sábado, 4 de fevereiro de 2017

CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ FILHO



* Honório de Medeiros

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes de Queiróz Filho, nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, aos quinze anos de idade, portanto em 1880, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura, durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará.

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada por seu único irmão[1], o renomado Major Ephiphanio.

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência.

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência.

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro!

Assim como vale um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus, e assim por diante. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[2], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[3], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[4] estas apresentaram-se, federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.”

Ou a luta por Bragança, no Pará, da qual foi Prefeito várias vezes. E a luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias Martins. Assim como a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados!

Em – “Chamas do Passado” - segundo volume inédito da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua sendo Childerico II. Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, de Caraúbas, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.

Nesse segundo volume nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção Cultura Potiguar. Por esse trabalho, pela Coleção, para a obra a ser apresentada ao público leitor, viriam todos nossos aplausos.

[1] Do padre.

[2] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996. 

[3] 7 de maio. 

[4] 8 de junho.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

FALTA TUDO E NÃO TEM NADA



* Honório de Medeiros


Minha faxineira é uma heroína.

Nova, ainda, trinta e cinco anos, aparenta bem mais. Casada com um pedreiro, é mãe orgulhosa de uma mocinha de dezoito, que “faz um curso de informática na cidade” após ter concluído o Segundo Grau.

Mora em “Jardim Progresso”, o último bairro da Zona Norte de Natal no sentido de quem vai para São Gonçalo do Amarante ou Extremoz.

Todo manhã ela acorda às quatro e trinta. Prepara o café, deixa pronto o almoço e começa sua luta diária para pegar transportes que lhe deixem nas diferentes casas onde ganha o pão de cada dia.

Lá pelas cinco, seis, a luta é para voltar para casa, essa mais difícil ainda.

No “Jardim Progresso”, cujo nome com certeza foi escolhido por algum burocrata sarcástico, não tem Posto de Saúde. Nem Delegacia. Tampouco Escola de Ensino Médio. Menos ainda creches.

“Creche? Tem no Vale Dourado. A semana passada um bocado de mulheres daqui foi dormir nas calçadas da creche para segurar uma vaga no atendimento do dia seguinte. Muitas voltaram sem conseguir.”

 Ou seja, falta tudo e não tem nada.

Quando lhe pergunto se a Polícia aparece por lá, ela ri. “Quando aparece é por que está perdida”.

“Dia desses dois vizinhos se travaram na faca. Ligamos para a Polícia. O policial que nos atendeu perguntou se tinha havido ferimentos. Quando soube que sim nos aconselhou a botar o ferido em um carro e leva-lo para o hospital mais próximo, que chegava logo. Nunca apareceu.”

Ônibus que é bom, somente os que passam no Vale Dourado, conjunto vizinho. Outro nome escolhido pelo burocrata sarcástico. Quando minha faxineira volta para casa, lá pelas seis da noite, pode ser que precise descer em Nova Natal. Então será quase uma hora de caminhada até a chegada.

Quinta passada entrei nos detalhes de sua vida como consequência da rebelião dos presos de Alcaçuz, aquele presídio-ratoeira construído por sobre dunas pelos políticos e burocratas do Estado.

Mais ou menos na hora do almoço eu lhe disse que o noticiário estava avisando acerca do recolhimento dos ônibus a partir das quatorze horas. Ela resolveu ficar. Perguntei como ia ser sua volta. Como suas explicações me soaram vagas, não aprofundei a conversa, mas lhe disse que se não encontrasse meio de transporte, voltasse. Eu lhe daria o dinheiro para pegar um “uber”.

Nesta terça soube de sua epopeia. Na parada para qual sempre vai encontrou uma mulher na mesma situação. Desceram até outra parada, depois outra, e nada de transporte. A mulher se lembrou do trem que vai até a Zona Norte. Desceram mais ainda, muito mais, pegaram o trem lotado e saltaram em Nova Natal. De Nova Natal até sua casa foi, mais uma vez,  uma hora de caminhada.

“Com quem você fez a caminhada?”

“Com Deus. E rezando.”

É uma heroína.

* Arte em pragmatismopolitico.com.br