sábado, 12 de novembro de 2016

UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO

* Honório de Medeiros

"APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele." 


Que o ensino, no Brasil, é completamente ultrapassado, basta cada um de nós recordar seus tempos de estudante e a ênfase dada, em cada Escola ou Faculdade, ao primado da INFORMAÇÃO sobre o CONHECIMENTO.

Em texto publicado anteriormente dissemos qual a distinção entre SE INFORMAR OU SER INFORMADO e CONHECER (http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/09/aprender-aprender.html).

Pois bem, o ensino tal qual é praticado hoje, no Brasil, com esse viés de INFORMAR, é anterior à presença, no País, dos jesuítas. Melhor, é anterior à Alta Idade Média, onde o ensino ocorria por intermédio do estímulo ao debate, à discussão, como nos mostra Jacques Le Goff em “OS INTELECTUAIS NA IDADE MÉDIA”:

"Com base no comentário de texto, a LECTIO, análise em profundidade que parte da análise gramatical, a qual produz a letra (LITTERA), ergue-se a explicação lógica que fornece o sentido (SENSUS) e termina pela exegese que revela o contéudo da ciência e do pensamento (SENTENTIA).

Mas o comentário provoca a discussão. A dialética permite ultrapassar a compreensão do texto para ir aos problemas que levanta, faz com que o texto se apague diante da busca da verdade. Um extensa problemática substitui a exegese. De acordo com procedimentos próprios, a LECTIO se desenvolve em QUAESTIO. O intelectual universitátio nasce a partir do momento em que põe em questão o texto, que não é mais do que uma base, e então de passivo se torna ativo. O mestre deixa de ser um exegeta, torna-se um pensador. Dá suas soluções, cria. Sua conclusão da QUAESTIO, a DETERMINATIO, é a obra de seu pensamento."

A partir de 1599 a Companhia de Jesus colocou em vigor o famoso Ratio Studiorum, uma espécie de coletânea privada, que surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante da explosão do número de colégios confiados aos jesuítas.

O modelo jesuítico, presente desde o início da colonização do Brasil pelos portugueses, apresentava os passos fundamentais de uma aula: preleção do conteúdo pelo professor, levantamento de dúvidas dos alunos e exercícios para fixação, cabendo ao aluno a memorização para a prova.

Como se pode depreender falta, ao ensino, no Brasil de hoje, comparando com a época dos portugueses, o estímulo ao levantamento de dúvidas, à crítica, por parte dos alunos. As aulas são preleções e nada mais...

Bachelard, comentando o cenário dos obstáculos epistemológicos à obtenção do conhecimento, em “A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO”, lembra que:

"No decurso de minha longa e variada carreira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico. O educador não tem o SENSO DE FRACASSO justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda."

Como aprendemos quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele, as preleções, meras exposições, podem até nos INFORMAR, mas, com certeza, em nada contribuem, além de fomentar o tédio, para o nosso CONHECIMENTO.

Aliás, é bom que saibamos distinguir entre APRENDER e CONHECER.

Que nós conhecemos quando aprendemos, quanto a isso não há qualquer dúvida. Se aprendemos, conhecemos; se conhecemos, aprendemos. Entretanto, por uma questão pedagógica, costumamos distinguir o APRENDER do CONHECER no sentido de que, no primeiro caso, nos referimos, tecnicamente, a aquilo que resulta da busca deliberada de conhecer.

Aqui, o “deliberada” faz a diferença, na medida em que podemos CONHECER sem que tenhamos nos encaminhado para isso, bem como podemos CONHECER enquanto resultado desejado, buscado, e alcançado.

Não por outra razão, se eu digo “eu aprendo”, estou me referindo ao processo por intermédio do qual eu obtenho o conhecimento. Se eu digo “eu conheço”, significa que compreendo, entendo, apreendo aquilo acerca do qual me refiro.

Ou seja, o APRENDER decorre do processo de aprendizado, que é algo que se busca conscientemente. Nesse sentido, o CONHECER engloba o APRENDER, vez que o CONHECER tanto pode ocorrer desde que queiramos, quanto pode ocorrer mesmo que não o queiramos.

No sentido utilizado neste texto, todavia, não há distinção a ser feita. Aqui, APRENDER tem o sentido de CONHECER, e o conhecimento é alcançado, no sentido que se deve almejar nas escolas e universidades, na medida em que problematizamos a realidade, ou seja, enquanto alunos, criticamos sistematicamente, vigorosamente, a informação que nos é ofertada por intermédio das preleções dos professores.

Recordemos Popper, em “CONJECTURAS E REFUTAÇÕES”:

"- Cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos..”

E Bachelard, em obra acima mencionada”:

"No fundo, o ato de conhecer dá-se CONTRA um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos (...)"

Ainda:

"Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas."

E, por fim:

"Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediatamente, melhor questionar."

Portanto o estímulo a essa crítica sistemática e vigorosa, ao debate, à discussão, por parte dos alunos, às informações veiculadas pelos centros de saber deve ser um postulado fundamental do ensino que pretenda alcançar níveis superiores de excelência.

Na verdade, esse estímulo deveria se constituir numa verdadeira “PAIDÉIA”, um ideal de civilização, algo intrínseco à nossa Sociedade, principalmente hoje em dia, com a permanente ameaça à Liberdade por parte do Estado, dos seus aparelhos de controle, e daqueles que o usam em proveito próprio.

O limite ao Estado foi, é, e sempre será, a Sociedade livre e não-alienada.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A "JUSTIÇA" DOS DEUSES

* Honório de Medeiros

Os fenômenos físicos, sua repetição, o padrão idêntico de suas conseqüências uma vez presentes as mesmas causas, quando apreendidos, são expressos através de uma fórmula – uma abstração – em uma linguagem sofisticada, a matemática.

Não precisamos descrever uma mesa para construir sua imagem ante nossos olhos; não é necessário fazê-lo em relação ao ferro que, colocado ao sabor do fogo, torna-se maleável e origina uma espada.

A certeza da inalterabilidade do fenômeno físico originou a consciência da causalidade pelo mecanismo da associação de idéias: não pode haver chuvas sem nuvens. E a expectativa de que todos os fenômenos ocorram da mesma forma, tanto na Grécia quanto no Egito, ontem como hoje, pertence ao mesmo gênero.

Esses fenômenos ocorreriam em virtude da “Justiça” dos deuses, entendida esta como “ordem”, “desígnio”, “determinação”, em um mundo na aurora de sua história.

Mas os deuses precisavam de intérpretes, de intermediários. Assim, foi fácil, para os mais espertos, fazer uso da confusão entre um fenômeno físico e um fenômeno que é conseqüência da vontade do homem, tal qual a proibição de matar, e se colocarem como representantes dos deuses na Terra. Ainda hoje há quem creia que os terremotos são punições divinas.

Hoje esses “deuses” foram substituídos por abstrações, como a “vontade do povo”, “moral média da Sociedade”, e assim por diante. Permanecem os intérpretes e intermediários. E os inocentes-úteis, aptos a serem manipulados. Ou seja, permanecem os lobos e as ovelhas.

Obviamente esse processo atende ao anseio da elite dirigente que o acentuava (e o havia criado).

Impressiona que se creia em Direito Natural quando qualquer conhecedor da história do Homem pode constatar, ao ler as primeiras compilações de leis escritas da humanidade, que sua existência se deve, única e exclusivamente, à necessidade de impor a ordem dos dirigentes.

Isso sem mencionar que, com certeza, na pré-história do Direito, apenas a necessidade de sobrevivência do clã originava a imposição de condutas, nunca algo abstrato quanto a idéia de Justiça.

Se se acreditar – é possível que alguém o faça – que esse ordenamento jurídico natural estaria à espera da maturidade da humanidade para ser colocado à sua disposição, bem, também se pode acreditar em Saci Pererê. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A RETÓRICA DOS OBJETOS

* Honório de Medeiros

“Ser é perceber” (George Berkeley, 1685-1753).

Os objetos falam, por assim dizer.

Existe uma diferença entre “ver” e “enxergar”, sabemos disso[1]. Quando “vemos”, percebemos.

Os objetos, se percebidos, dizem-nos muito.

Imagine que você seja um advogado que foi introduzido na biblioteca de um potencial cliente para discutir com ele acerca de um futuro contrato de honorários. Você não se preparou para o encontro, seja porque não teve tempo, seja porque confia em sua capacidade de persuasão.

Ao aguardar a chegada do seu possível futuro cliente em sua (dele) biblioteca se admira com a organização reinante: livros limpos, organizados por tema e, nesses nichos, os autores postados em ordem alfabética.

A biblioteca condiz com o ambiente no qual ela repousa. Os outros objetos do espaço circundante também primam pela limpeza e organização: não há nada fora do lugar.

Esses objetos dizem que seu dono é alguém, portanto, organizado, até mesmo meticuloso.

Qual a probabilidade de você convencê-lo nesse encontro para o qual não está devidamente preparado com dados, documentos, legislação, jurisprudência e, até mesmo, doutrina?

Quase nenhuma.

Existe uma retórica dos objetos, chamemo-la assim, na falta de uma denominação melhor. O que se quer dizer é que “os objetos dizem, expressam algo”, dependendo de seu contexto. E é fundamental conhecê-la para quem se interessa em “decifrar” o meio com o qual interagimos.

Ramo da Retórica dos Objetos é a publicidade. Usa a técnica da Retórica dos Objetos para induzir associações de idéias que promovam o consumo.

Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento” que decodificamos os objetos.

E o que seria o “estranhamento”? É algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual uma arte marcial, tornar-se hábil em captar essa desarmonia demanda contínuo exercitar-se até o limite do possível.

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa e meticulosa da biblioteca do cliente chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “ver” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer alguma inferência, ou elaborar alguma hipótese, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norteamericana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. Mas como essa câmera filmava através do espelho? Patrick sabia que os ilusionistas usam muito um tipo de espelho que permite a quem está por trás visualizar através dele. A noção de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, ali, essa sensação de estranhamento.

Um exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." ("O Tango da Velha Guarda"; Arturo Pérez-Reverte).

[1] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/ver-e-enxergar-acionam-regioes-diferentes-do-cerebro-diz-estudo.html

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

DE GRATIDÃO INTELECTUAL

* Honório de Medeiros

Tenho gratidão intelectual a dois grandes amigos, a quem considero os mais inteligentes de minha geração. 

Eduardo Jorge Maciel Pinheiro me presenteou, meados dos anos 70, com "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos", de Sir Karl Raymund Popper.


Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, logo depois, me iniciou na filosofia de Gaston Bachelard.


Ambos os autores atemporais. Enquanto houver civilização como conhecemos, eles serão referências.

Popper foi o último grande filósofo do século XX: matemático, músico, lógico, sociólogo, epistemólogo, cientista político. Bachelard, um homem diurno, a pensar a ciência, e noturno, a pensar a arte, com a intensidade de um gênio.

Gostaria de ser lembrado por alguns dos meus ex-alunos como alguém que lhes apresentou um autor ao qual se vincularam intelectualmente pelo resto dos seus dias.

Muita pretensão, claro, mas sonhar é livre e não custa nada.

Aos professores Eduardo Maciel e Gilson Pereira, minha gratidão.

domingo, 6 de novembro de 2016

CRÔNICA DE UM FATO ANUNCIADO

* Honório de Medeiros

Em 12 de novembro de 2014, fiz a seguinte publicação aqui, neste blog: 
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2014/11/rn-de-pacto-social-e-reforma-de-estado.html

"Tendo em vista as informações que vão surgindo na mídia acerca da alarmante situação financeira do Estado, não enxergo outra alternativa, para o futuro Governador do Estado, a não ser liderar a construção de um novo Pacto Social no Rio Grande do Norte para alavancar a urgente, imprescindível, fundamental, Reforma do Estado.

Pacto Social, vez que todas as forças da Sociedade, representadas pelos poderes constituídos, precisam participar diretamente, sob a legítima liderança do futuro Governador do Estado, da elaboração de uma Carta de Princípios que nortearia a Reforma de Estado.

Reforma de Estado que permita a reconstrução do Rio Grande do Norte social, econômica e financeiramente, estabelecendo os parâmetros necessários a serem seguidos pelos poderes constituídos para assegurar o desenvolvimento do Estado.

Uma vez estabelecidos esses instrumentos fundantes da nova realidade política, social e econômica, todas as medidas necessárias a serem tomadas estarão naturalmente legitimadas e contarão com o apoio da Sociedade. 

É o que se espera de alguém que foi escolhido pelo povo para derrotar todas as forças políticas tradicionais do Estado." 

Em 3 de junho de 2015, voltei a abordar o tema do "pacto social":
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/06/por-um-novo-pacto-social-para-o-rio.html

"O problema fundamental do Rn, hoje, é antes de tudo, antes do social, do político, de natureza orçamentária e financeira.

O Governo precisa de dinheiro e não tem de onde tirar. A entrada no Fundo Previdenciário prova isso. E a situação vai piorar, estamos beirando a recessão. Os repasses estão em queda livre. A arrecadação do Estado, com o declínio da atividade econômica, tende a diminuir lenta e 
inexoravelmente. As demandas dos servidores e da Sociedade tendem a crescer.

Se eu fosse o Governador Robinson convocaria os Poderes e a Sociedade para um novo Pacto Social.

Um pacto social no qual a renúncia e o trabalho de cada um, pensando no todo, fosse mais importante que qualquer demonstração de unilateralidade.

O Governador é o líder institucional apto a convocar e coordenar esse processo. Com os votos que recebeu, na situação em que isso aconteceu, é de se dizer, até mesmo, que deve assumir esse papel.

E com os pés firmemente fincados no presente, lançar as bases do futuro."

O resto, todos sabemos.

No mais é rezar. Esperar que chova. E esperar juízo nos homens.