quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ: COMO ERA A CIDADE NA ÉPOCA DA INVASÃO


 

 
Mercado Público de Mossoró, poucos anos após o ataque de Lampião

Em 1926, com mandato previsto até 1928, era Presidente da Intendência[1] de Mossoró, Rodolpho Fernandes de Oliveira Martins, tendo como Vice seu parente próximo Hemetério Fernandes de Queiroz. Os outros intendentes eram Luís Colombo Ferreira Pinto, Francisco Clemente Freire, Antonio Teodoro Soares Frota, Manuel Amâncio Leite e Francisco Borges de Andrade. 

Mossoró, segundo Raul Fernandes[2], em 1927 competia com Natal, a capital do Estado. Enquanto esta tinha 30.600 habitantes, aquela possuía 20.300. 

A denominada “Capital do Oeste” era ligada ao litoral por uma estrada de ferro que se estendia até o povoado de São Sebastião, atual Dix-Sept Rosado, na direção Oeste, percorrendo quarenta e dois quilômetros, enquanto, por ela, estradas de rodagem convergiam de vários recantos, percorridas por caminhões que, aos poucos, substituíam o transporte animal. 

Possuía a cidade o maior parque salineiro do país. Três empresas descaroçavam e prensavam algodão, produto denominado, na época, e por muito tempo ainda, de “ouro branco[3]”. 

 Centro comercial importante, em Mossoró se comprava peles, algodão e cera de carnaúba. Exportava-se, pelo porto de Areia Branca, tudo quanto era trazido pelos longos comboios de mercadorias chegados do interior da Paraíba e do Ceará, que voltavam levando sal e produtos oriundos de centros mais avançados. 

Havia energia elétrica, que alimentava várias indústrias nascentes, assim como repartições públicas federais e estaduais, além da agência do Banco do Brasil, que era o único estabelecimento de crédito da região. 

Na cidade circulavam três jornais: ‘O Correio do Povo’, o ‘Nordeste’, e ‘O Mossoroense’, este o mais antigo do Município, e um dos mais antigos do Brasil, fundado em 1872. O ensino era ministrado por intermédio de estabelecimentos para ensino secundário – a Escola Normal e a de Comércio, e em dois colégios com internato – o Diocesano Santa Luzia para rapazes, e o Sagrado Coração de Maria, dirigido por religiosas franciscanas, portuguesas, para moças.

PERFIS
 
Dona Bernadete – Maria Bernadete Leite Duarte – guardava, aos oitenta e cinco anos, a beleza dos traços que a fotografia – tirada no verdor de sua mocidade – pousada em cima da cristaleira antiga, muito bem conservada, revelava.
 
Ela nos recebeu a mim, Carlos Duarte e Cleilma Fernandes, estes do jornal mossoroense “Página Certa”, e Paulo Gastão, fundador da Sociedade Brasileira de Estudo do Cangaço – SBEC, em sua residência, no dia 18 de dezembro de 2006, em um final de tarde tipicamente sertanejo, tornado mais fresco pela presença do vento Nordeste e mais agradável pelo lanche com o qual nos brindou após a entrevista.
 
Dona Bernadete é filha de Manoel Duarte, um dos heróis da resistência a Lampião em Mossoró.
 
“Nasci em Mossoró”, diz-nos ela, “em 1921, e aqui morei até 1950.
 
Quando completei quinze anos fui estudar na Escola Doméstica em Natal. Minha mais antiga lembrança de Mossoró é dos meus pais. Minha infância foi igual à de todas as crianças daquela época: pulei corda, brinquei de roda, de boneca, gostava de bonecas de pano, fazia teatrinhos, aperreava o pavão de Dona Filomena de Seu João Carrilho...
 
Dormíamos cedo, às 19h00min. Tomávamos café da manhã às 07h00min, almoçávamos às 11h00min e jantávamos às 17h00min. Comíamos pão, biscoito, leite de vaca, ovos, cuscuz, coalhada no café da manhã; feijão de arranque temperado com carne, cebola, alho, coentro, cominho, arroz, farofa no almoço; mugunzá, cuscuz, coalhada no jantar. Comíamos frutas e bolachas pretas.
 
Já mocinha, escutávamos, enquanto arrodeávamos a Praça do Pax, a banda no coreto. Os rapazes ficavam em pé, de frente para a parte interior da praça. Às 21h00min todo mundo ia embora.
 
Freqüentávamos o Clube Ipiranga e íamos ao cinema diariamente com meu pai, Manoel Duarte. Eu adorava os musicais. Gostava também muito de ler historinhas, o "Tesouro da Juventude".
 
Quando eu estudei em Natal, na Escola Doméstica, saia nos finais-de-semana para a casa da esposa de Rodolpho Fernandes. Lembro-me da passagem do Zeppelin e do Hindenburgo por Natal. O Hindenburgo, que era mais grosso, ficava parado, suspenso no ar e soltava malas para o pessoal da terra.
 
Quando da invasão de Mossoró papai levou a família para Tibau e voltou para participar da resistência. Rodolpho Fernandes era compadre de papai, padrinho de meu irmão Antônio Leite Duarte.
 
Nunca ouvi falar na história de Massilon ser apaixonado por Julieta, filha de Rodolpho.
 
 Papai ficou na casa de Rodolpho, na parte de cá (que dava para a Igreja de São Vicente) e havia outros na Igreja. Estes não alcançavam os cangaceiros postados na parede lateral da casa de Alfredo Fernandes, esquina com a Avenida Alberto Maranhão, mas apontaram Colchete que já estava com uma garrafa de querosene na mão para jogar nos fardos de algodão. Papai atirou em Colchete e Jararaca. Muita gente correu da luta.”
 
Dona Iracema – Iracema de Assis Duarte – com seus oitenta e poucos anos, magra, espigada, alerta, faz coro ao depoimento de Dona Bernadete.
 
Estamos na calçada em frente à casa na qual ela mora sozinha. Não quer sair de lá, em hipótese alguma, e se render ao chamado dos filhos.
 
É o dia 19 de dezembro de 2006 e estamos quase ao lado da histórica sede da Prefeitura Municipal de Mossoró, antiga residência de Rodolpho Fernandes, na Avenida Alberto Maranhão, cujo tráfego, mesmo àquela hora crepuscular, não esmorece. Passantes vão e vêm. Não se dão conta de que há setenta e nove anos atrás o movimento, naquela avenida, se deu por motivos bem diferentes dos habituais.
 
“A casa em frente à de Alfredo Fernandes era de João Hollanda”, lembra Dona Iracema. “Os fundos davam para a casa de João Marcelino – o médico que cuidou de Jararaca.
 
Naquele tempo, no entorno da Igreja de São Vicente havia a casa da esquina da Rua Francisco Ramalho com a Alberto Maranhão do lado de cá (no alinhamento da Igreja); havia a minha casa (várias geminadas vizinhas ao palacete de Rodolpho), a de seu Artur Paula (palacete cuja frente dava para a lateral da casa em frente aos fundos da Igreja)[1], a casa onde hoje funciona a Escola 13 de Junho, outra de umas catequistas...
 
Não havia pudim, bolo, doces na minha infância. Era rapadura, cocada, pão doce, bolacha preta. Galinha aos domingos. Coalhada de manhã para o pai. Não havia o hábito da verdura. A hora das refeições era essa mesma que Bernadete falou. E as brincadeiras também. Meninos não participavam. As brincadeiras: escravos de Jó, tique, esconde-esconde, teatro infantil (representavam contos de fadas).
 
O cinema era o Almeida Castro, no Grande Hotel. Esse Grande Hotel concentrava a nata da sociedade nos grandes eventos. Os filmes eram mudos.
 
Manoel Duarte, um homem muito sério, achava graça com os retratos dos heróis nas trincheiras. Dizia que a máquina fotográfica era muito boa, pegava fulano e sicrano em Areia Branca... Zé Otávio – o que fotografou as trincheiras – era o fotógrafo da época. Os Fernandes[2] eram os ricos de Mossoró. Dizia-se que Tertuliano era o mais rico.”
 
É dezembro de 2006. Irmã Aparecida nos recebe, a mim e a Carlos Duarte, em seu gabinete no Colégio Sagrado Coração de Maria – o Colégio das Freiras, onde estudaram e estudam as filhas das elites de Mossoró, geração após geração.
 
Irmã Aparecida tem o mesmo tipo físico de Dona Bernadete e Dona Iracema. Nela, entretanto, o hábito de comandar se deixa perceber através das frases pontuadas de forma mais incisiva, como a evitar contestações. Irmã Aparecida, apesar da idade, ainda comanda o Colégio. Nada leva a crer, observando-se sua agilidade física e mental, que a aposentadoria esteja próxima.
 
“Merendávamos às 09h00min: coalhada, copo de leite, ovos batidos, fubá de milho com mel, ou gema de ovo com mel de abelha. Almoçávamos às 11h00min. Não se conhecia feijão preto e não se comia bode porque fedia. Comia-se melhor no campo que na cidade. Nas refeições, silêncio: era preciso manter-se o respeito.
 
À mãe competia a educação. O pai quase nunca se metia. Os castigos: ficar atrás do guarda-roupa e a palmatória. A educação era feita através da tradição oral: não mentir, por exemplo. Rezava-se o ofício, particularmente, todos os sábados. Mas não se misturava moral com religião.
 
A diversão dos homens era jogar sueca. A dos meninos irem para o terreiro. Líamos, quando muito, os livros didáticos. Assistíamos filmes mudos pelo menos duas vezes por semana.
 
As grandes famílias de Mossoró eram os Fernandes, os Leite, os Duarte. Ainda não havia Rosado. Não se sabia quem eles eram. Os ricos eram Costinha Fernandes, João Marcelino, Miguel Faustino, Tertuliano Fernandes...
 
Entretanto tão instigante quanto essas entrevistas a respeito da Mossoró da década de 20 do século passado é a leitura das “Memórias” de Sebastião Gurgel[3].
 
Em seu diário, no qual começa, no ano da invasão de Mossoró, portanto escrevendo em março de 1927, alude, desde logo, à inauguração, em 1º de novembro de 1926, do serviço da estrada de ferro Mossoró/São Sebastião (atual Governador Dix-Sept Rosado).
 
Informa que o inverno está sendo bom e que a estrada de ferro progride até Caraúbas.
 
Em julho noticia a invasão de Apodi por Massilon, a 10 de maio, e a de Mossoró, a 13 de junho, por Lampião e seu bando.
 
É avaro nas informações e mais ainda na análise do fato.
 
“Convém”, escreve ele em seu diário, “consignar um voto de louvor aos Srs. Cel. Rodolfo Fernandes, prefeito da cidade, Julio Maia, que melhor que outro qualquer dirigiu a defesa, Mirabeau Melo[4] que como encarregado do telégrafo, prestou enormíssimo serviço, Dr. Gilberto Studard Gurgel, tenente Abdon Nunes, Cornélio Mendes, João Fernandes, etc.”
 
E acrescenta, irônico: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada”.
 
Ainda em julho relata um acontecimento “sensacional – o casamento de Monsenhor Almeida Barreto com a senhorita Maria Nazareth de Oliveira.”
 
 Imaginemos o impacto que tal acontecimento deve ter suscitado na provinciana Mossoró do início do século XX!
 
Somente em outubro de 1927 Tião Fernandes volta a escrever em seu diário. Critica o governo do Ceará por não tomar providências contra o cangaço. Registra ter deixado suas duas filhas em Natal, para estudarem na Escola Doméstica. Em dezembro, no dia 4, lembra que
 
Em virtude de uma lei séria que garante o voto à mulher, nesta semana (passada) requereu o título de eleitora do município, a professora dona Celina Viana, sendo ela a primeira eleitora do Brasil.”
 
 E, também, que
 
 Em substituição do presidente da intendência Rodolfo Fernandes que morreu no dia 10 de setembro, foi eleito para o mesmo lugar Luiz Colombo Ferreira Pinto.”
              


[1] A casa onde residia Joaquim Perdigão, casado com Julieta Fernandes, filha de Rodolpho Fernandes.
 
[2] Em curiosa crônica escrita para “O Mossoroense”, em 12 de março de 1950, assim se refere aos Fernandes, ao aludir a Mossoró e seus capitalistas, Djalma Maranhão: “Fortunas imensas cimentadas no comércio do algodão e na indústria do sal. Vicente Fernandes e Alfredo Fernandes, capitães de indústria, legando aos seus descendentes Paulo, Pedro, Ezequiel, Xavier, Ademir e mais uma dúzia de jovens milionários, uma organização que é um verdadeiro estado dentro do Estado do Rio Grande do Norte;” (“NOVAS IMAGENS DE MOSSORÓ”; MAIA, Jerônimo Vingt-um Rosado; Coleção Mossoroense; Volume CVIII; 1980; Mossoró, Rn).

[3] “MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO (DIÁRIO)”; GURGEL, Sebastião; Coleção Mossoroense; Série “C”; volume 1293; novembro de 2002; livro III; Mossoró, Rn.
 
[4] A quem se refere Paulo Fernandes, filho de Rodolpho Fernandes e ex-Prefeito de Mossoró, de forma acrimoniosa, em carta transcrita neste livro endereçada a Nertan Macedo.

[1] Prefeito, à época.
 
[2] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; FERNANDES, Raul; 2ª. EDIÇÃO; Ed. Universitária – UFRN; 1981; Natal, Rn. 
 
[3] “No Rio Grande do Norte, a produção algodoeira do século XX refletiu todos os momentos de favorabilidade ou não das conjunturas.
 
                Confiantes na crescente demanda do produto e na consequente elevação dos preços, os grandes e pequenos proprietários do Seridó, Oeste e Trairi encheram suas terras com a lucrativa malvácea. Por causa dos seu alto valor, o algodão passou a ser chamado de ‘ouro branco’. Um município seridoense recebeu essa denominação, em 1918, para homenagear a planta tão valorosa (SOUZA, Itamar de; “A REPÚBLICA VELHA NO RIO GRANDE DO NORTE”; EDUFURN – Editora da UFRN; 1ª edição; Natal; 2008).

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